Entrevista com Hugo Fernandes - Pantanal em chamas: combate ao fogo e resgate da vida silvestre
Conversamos em exclusividade com o divulgador científico, biólogo e professor da Universidade Estadual do Ceará.
Em 2021, pelo terceiro ano consecutivo, o Pantanal – e o bioma vizinho do Cerrado, ao qual está intimamente conectado – enfrenta queimadas majoritariamente causadas pelo homem, de forma intencional ou acidental, que destroem o habitat natural e impactam os animais silvestres. O fogo é agravado por uma temporada de pouquíssimas chuvas, que por sua vez pode ser associada ao desmatamento impulsionado historicamente em todo o Brasil pela expansão das fronteiras da agropecuária industrial intensiva.
Com o somatório de secas cada vez mais severas, incêndios que aumentam em gravidade, quantidade e frequência, perda de habitats, alterações nas dinâmicas de espécies, rareamento de alimentos, pressões de caça e tráfico de vida selvagem e o processo de mudanças climáticas, o resultado acumulado para a fauna e a flora da região é trágico. E a resistência de biomas vulneráveis como o Pantanal fica progressivamente comprometida. O número mais recente a impressionar a todos foi a estimativa de que 17 milhões de animais foram vitimados pelos incêndios recorde de 2020 na região.
A Proteção Animal Mundial conversou sobre todos estes temas, e em especial sobre particularidades e dificuldade de resgatar a vida silvestre em emergências, com Hugo Fernandes, biólogo, doutor em Zoologia, pós-doutorado em Ecologia e professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) desde 2016. Ele abraçou, há cerca de uma década, a missão de aproximar a ciência do grande público e se tornou divulgador científico usando a força da TV e das redes sociais.
Como se não bastassem os desafios acadêmicos e de luta contra a desinformação, no ano passado, diante da gravidade das queimadas no Pantanal, expedicionou com o documentarista Lawrence Wahba, manteve colaboração com a equipe do Instituto Homem Pantaneiro e atuou em campo para auxiliar a articular esforços. Acabou presenciando em um sobrevoo cenas que impactaram sua vida e que motivaram novas ações no bioma nesta temporada. Confira a seguir a nossa entrevista.
Há quanto tempo você vem se envolvendo mais diretamente com o estudo, a proteção e o resgate de animais no Pantanal? Fui pela primeira vez ao Pantanal em 2013 para coletar dados do meu doutorado sobre caça. Já em 2020, o que me levou de volta ao Pantanal foram realmente as queimadas, dessa vez sem pretensão acadêmica, mas mais pelo sentido de urgência diante da tragédia dos incêndios que consumiram cerca de 30% do bioma. Fiz isso aproveitando a visibilidade do meu trabalho, como nas redes sociais, sobretudo, para ajudar em articulações e potencialização de campanhas.
E como foi ver de perto esse episódio? Nem era a intenção fazer acompanhamento de incêndio em tempo real. A gente foi para uma área onde não estava sofrendo queimadas, só que eu acabei que acompanhando e documentando desde o início um dos maiores incêndios no Pantanal, que foi na região do Acurizal (n.r.: região localizada no estado do Mato Grosso do Sul, na fronteira com o estado do Mato Grosso e Bolívia, situada a cerca de 20 km do Parque Nacional do Pantanal Mato-Grossense), o Pantanal da Serra do Amolar.
E isso foi assim uma das experiências mais intensas da minha vida, porque eu sobrevoei junto com um piloto local, Chico Boabaid, o Pantanal para fazer um deslocamento. E a gente acabou documentando o início do que seria um dos maiores incêndios do bioma.
E hoje, um ano depois, voltei lá, para acompanhar o que foi feito na articulação da campanha da Brigada Alto Pantanal, que é uma brigada civil com pessoas de lá, como ribeirinhos, agricultores e fazendeiros, para mitigar os problemas tanto no Pantanal do Amolar quanto no Pantanal do Porto Jofre. Ainda no ano passado eu também estive lá depois que os incêndios tinham consumido maior parte do Jofre, algo em torno de 80%, e fiz um trabalho já voltado para tentar rastrear as onças pintadas, junto com as pessoas locais.
Como é que funciona essa articulação? Como se formam as brigadas para o combate ao fogo? As brigadas antincêndio são formadas a partir de uma urgência, de uma necessidade que advém da pouca eficácia do poder público em resolver um problema de tamanha magnitude em uma área de milhares e milhares de hectares.
Por isso a articulação atende à necessidade imediata de treinar e equipar adequadamente pessoas locais, que são aquelas que se deparam com os primeiros focos de fogo. Esse trabalho, com as pessoas da comunidade equipadas e devidamente treinadas, é de grande importância para controlar os primeiros focos ou pelo menos mitigar o que pode vir a ser uma coisa maior.
E como é a organização para o resgate de animais? Já o trabalho de resgate geralmente é feito por veterinários, biólogos, zootecnistas e outros profissionais que trabalham com fauna. Mesmo eles, precisam de treinamento e equipamentos adequados. Nessa atuação, o GRAD (Grupo de Resgate de Animais em Desastres) junto com outras instituições, merece destaque pelo que vi do trabalho no Pantanal.
Como acontecem as ações propriamente ditas? Dá para proteger os animais antes que sejam atingidos? O resgate de animais ele ocorre de diversas formas. Pode sim vir antes do fogo, observando já o avanço das chamas em um determinado local. É possível entrar em campo e fazer o afugentamento de fauna para conseguir deslocar esses indivíduos para uma área em que você já isolou e determinou como segura porque pôde abrir um aceiro e existe uma equipe de combate que está contra fogo.
Hugo Fernandes/Foto: Bruna Lucheze
E quando o fogo está ativo? Quais são as dificuldades durante a emergência? O resgate também pode ser feito durante o incêndio, quando obviamente os riscos são elevados a 1000 e você não pode entrar literalmente no fogo para resgatar os animais. Então você precisa avançar à medida que a equipe de combate ao incêndio avança. Existe uma técnica para você adentrar na mata nessas circunstâncias para tentar mitigar e resgatar aqueles animais que acabaram de ser atingidos. Uma vez que você os encontra, existe todo um trabalho de deslocamento que pode envolver uma ou dezenas de pessoas, a depender do tamanho do animal.
O ideal é sempre haver um médico veterinário presente para prestar os primeiros atendimentos em um local seguro, até seguir para a uma base pré-montada de campanha onde os atendimentos vão ser potencializados. Se for necessário, esse animal é deslocado a um centro veterinário em algum outro município. Ou, até para locais mais distantes, até envolvendo o transporte do animal por avião. Isso ocorreu no ano passado, graças a uma articulação entre as ONGs, poder público e instituições privadas.
Ou, então você pode determinar, a partir do diagnóstico do veterinário, se aquele animal entra numa quarentena em algum local ou se ele já pode ser imediatamente solto. É o que a gente chama de soltura branda, quando o animal é resgatado naquele momento e é devolvido à natureza, obviamente em local seguro, ali mesmo naquele bioma, ali mesmo naquela região.
Pela extensão do Pantanal e pela intensidade de alguns incêndios nem sempre dá para entrar em ação imediatamente. Qual é a preocupação com a fauna no rescaldo? Nesses casos há ali uma busca, há ali um censo que se faz não só para contabilizar perdas, e isso é principalmente um trabalho de biólogos e ecólogos, mas também identificando animais que ainda possuem condições de serem resgatados e salvos. Aí essa equipe entra e faz esse tipo de resgate.
Em relação ao preparo específico para o resgate da vida silvestre e à infraestrutura de apoio. Houve algum avanço no Pantanal desde o ano passado? Qual a avaliação do quadro geral no Brasil? Em 2020 o cenário era de um completo caos, porque você tinha muita gente com grande vontade, mas com pouco treinamento, com a excepção do GRAD de outras instituições. Hoje as coisas são um pouquinho melhores. Há guidelines, há um e-book até do Conselho Federal de Medicina Veterinária, por exemplo, que norteia o que deve ser feito em acidentes e em desastres ambientais envolvendo animais.
Mas ainda existe uma lacuna muito forte em relação à método, a treinamento. Em relação ao básico mesmo, que é o norteador do que deve ser feito. Ainda faltam investimentos em treinamento e equipamentos de proteção.
Para além disso, nós temos um gravíssimo problema de infraestrutura, uma pouca articulação entre o poder público e os potenciais agentes de resgate, tanto pessoas físicas como pessoas jurídicas, e isso decorre de uma grande falta de investimento. Só agora, principalmente depois não somente do Pantanal, mas também de Mariana e Brumadinho, é que é essa política de resgate em desastres começou a ser observada com melhor foco no Brasil. Mas isso lá fora é muito comum: você tem equipes treinadas, você tem infraestrutura, artigos publicados, centros de pesquisas. No Brasil não. No Brasil você tem iniciativas muito pontuais.
Mas nós temos um problema ainda mais grave, que é um problema sistêmico. Vamos supor que eu tivesse centros de resgate de animais em desastres espalhados no Brasil. Isso pouco adianta se eu não tiver hospitais veterinários e profissionais veterinários com uma estrutura que consiga atender esses animais em situação trágica. E isso nós temos muito pouco, muito pouco mesmo. E isso é um problema sobretudo público porque o animal silvestre é de responsabilidade da União.
Ocorre muito é que esses animais tendem a ser deslocados para institutos privados ou para profissionais autônomos, que são de clínicas particulares, geralmente voltadas para animais domésticos, o que muitas vezes até resolve. Só que sendo os animais silvestres pertencentes à União, cabe ao Estado estabelecer centros de triagem e hospitais veterinários para nossa fauna. Basicamente, o cenário disso no Brasil é vergonhoso.
O fogo não é o único vilão da vida animal. Mas ele tem surgido agravando uma série de agressões e evidenciado problemas. Como as coisas se sobrepõem? Todo sofrimento animal, seja lá em que espécie for, ele é sinérgico, ocorre numa soma de diversos impactos ambientais. Quando a gente fala de um desastre de incêndio no Pantanal, a gente precisa somar aos problemas já enfrentados pelo bioma, como perda de habitat, como caça, como zoonoses, mudanças do clima, introdução de espécies exóticas e coisas assim.
A ameaça de um incêndio não parece igual para diferentes animais. O que mostra a experiência em campo? Como são os diferentes impactos? Quando vem o fogo, não há um impacto homogêneo. É um impacto heterogêneo, e sempre de larga escala. Quando há, por exemplo, animais com pouca dispersão em solo, como é o caso de répteis, como é o caso de anfíbios, como é o caso de vários insetos, esse impacto tende a assolar quase a totalidade da população daquela espécie naquela região. Aí as pessoas tendem a falar o seguinte: “bom, animais que correm muito estarão livres ou menos suscetíveis”.
Só que a gente precisa lembrar que no Pantanal existe o fogo subterrâneo. Uma região já pegou fogo, e quando você olha parece que está tudo bem. Só que embaixo daquela primeira camada de serrapilheira queimada, o fogo está vivo. Então, se tem um incêndio florestal atrás, o animal tende a ocorrer para um espaço que pode ter fogo subterrâneo. E disso resultam aquelas imagens que rodaram o Brasil, das onças e antas e outros animais com as patas queimadas. Então, por mais que elas consigam correr, a área queimada é gigante e com um fogo atrás e debaixo do solo aparente, elas tentam vencer este processo, e muitas não conseguem.
As aves, por exemplo. As aves voam, é fato. Mas quando você tem um problema dessa magnitude, você está falando de áreas reprodutivas que são perdidas. Não é toda árvore que uma arara consegue fazer o seu ninho. Tanto é que o trabalho do Instituto Arara-Azul, o trabalho mais primordial deles, é a instalação de ninhos artificiais. Porque com o corte de madeira – olha aí o efeito sinérgico – elas tendem a perder ninhos. Então quando você tem um evento dessa magnitude, esses ninhos também são perdidos. Essas áreas reprodutivas são perdidas.
Pelo teu histórico de trabalho, como é que você vê a caça nesse contexto? Ela pode aparecer entre causas do desastre ou se aproveitar do momento e agravar o impacto para a fauna? O uso do fogo para caça é bem tradicional, é usado até por populações indígenas, o que não explica o que aconteceu ano passado, por favor. Não só populações indígenas, mas população não indígena também. Você coloca fogo em determinada área e os animais se deslocam até um local específico, onde os caçadores estão esperando .
Agora, o fogo em geral faz com que os animais fiquem muito mais suscetíveis. E também mais entregues. Eles se expõem mais também. Tanto aos predadores naturais quanto aos predadores humanos. Então sim, essa atividade de caça também tem uma dinâmica em relação a isso.
Além disso, incêndios também mudam a dinâmica social, a dinâmica socioeconômica. A caça é uma dinâmica socioeconômica circular no Brasil, então ela vai estar presente em qualquer situação. Com ou sem fogo ela vai estar presente. Com fogo, da mesma forma que toda a dinâmica muda, a caça também muda e você vai ter sim essas questões mais oportunistas
Isso também é outro exemplo de sinergia de fatores de que falamos. Quando você tem uma alta pressão de caça em um local, você acaba jogando as populações para uma determinada região, que pode estar sofrendo incêndio. Esses animais ficam em uma eterna dispersão, que causa inúmeros problemas de competição intra e entre espécies, maiores suscetibilidades a ameaças que não necessariamente são a caça, mas podem ser incêndios, alagamentos. Então é muito complexo, é uma rede imensa de interações e a caça sim, quando é colocada nessa rede, tudo muda.
Diante disso tudo, e da tua atuação com divulgação científica e a questão animal, o que você recomenda para as pessoas que se sensibilizam e querem ajudar? Vamos lá: são várias formas de ajudar. E eu posso começar falando com o que se pode fazer para não atrapalhar, o que já é muita coisa.
Por exemplo, não cair num discurso geralmente político-partidário ou qualquer discurso antiambientalista barato. Então, entender que por trás daquele movimento que existem pessoas, profissionais, voluntários, comunidades humanas que de fato estão entregando ali não só trabalho, a alma por aquilo. Tentar entender, conhecer um pouco antes de criticar. A segunda é não querer ser você o herói despreparado, que vai sair da sua casa, vai pegar um avião ou pegar um carro, vai para o meio do incêndio. Não faça isso, é muito perigoso. É um negócio que exige muito treinamento e até formação, então muito cuidado.
Mas como é que você pode ajudar de fato? Primeiro é se articular, conhecer a campanha com a qual você está se articulando, quem é a instituição, qual o histórico da instituição, se já é uma instituição bem formada. Se ela é um ONG, seja ela internacional, nacional ou local, mas se ela tem ali uma história. Procurar saber disso, porque tem muita gente que se aproveita. E aí você pode escolher uma, duas, quantas você quiser, mas pelo menos se apegue a uma instituição para você apoiar.
E apoio pode vir de um monte de formas. Pode ser na forma de doação, que com certeza é bem aproveitada. Então quem tem esse “ongfobia”, deve procurar conhecer o trabalho de uma ONG. Geralmente todas elas têm que fazer uma excelente prestação de contas. Geralmente elas têm diversos níveis de apoio, incluindo quantias baixas que já podem ajudar a comprar um medicamento ou comida para os animais afetados.
Outro ponto, apoiar no sentido de compartilhar, defender, pautar, levar essa discussão para sua família, para a escola, para a universidade, para o centro político, para mesa do bar. Tentar fazer com que isso realmente seja pautado.
E, o mais importante ponto, na hora do voto. Na hora do voto você não considerar a possibilidade de votar em alguém que não tenha foco ambiental como um dos seus maiores pilares.
Hugo Fernandes e Lawrence Wahba no Pantanal em 2020 / Foto: Ernane Júnior