
Lições ignoradas: crueldade desinibida e pandemia à espreita na esquina do Brasil
Proteção Animal Mundial relata a situação em mercados ligados à exploração da vida silvestre no Peru em 2019 e no mês passado. Centenas de espécies seguem afetadas. Nem a ameaça zoonótica escancarada pela Covid forçou mudanças. Brasil pode estar em risco ao fornecer e demandar animais deste polo
A pandemia de Covid-19 mudou muitas coisas, mas outras continuam absurdamente inalteradas. Carne de paca e vísceras de tartarugas-de-pés-amarelos recém extraídas. Uma cabeça de jaguatirica. Órgãos sexuais de botos e peles secas de onças. Cobras empalhadas, dentes de jacaré e garras de preguiças. Garrafadas diversas, afrodisíacos, ornamentos e amuletos. Às vezes, companheiros domésticos ou artistas particulares. Souvenires ou até figurantes para fotos. Estes são itens e destinações de uso de mais de 200 espécies da vida silvestre que chegam a ficar disponíveis para compra no recém-reaberto mercado de Belén (e em outros menores), na cidade Iquitos (Peru), conforme constatado in loco, de forma secreta, entre agosto e setembro deste ano por especialistas da Proteção Animal Mundial, organização não-governamental que trabalha em prol do bem-estar animal.
O cenário é assustadoramente semelhante ao visto ainda em 2019 por uma investigação científica sobre o tema que acabou interrompida pela pandemia, e que foi só recentemente publicada. Ela foi aproveitada e complementada na produção do relatório inédito “Negócio Arriscado: como os mercados de vida selvagem do Peru estão pondo animais e pessoas em risco”.
“A despeito de isso ser ilegal, tais ‘produtos’ voltaram a ser ofertados ostensivamente junto com cortes de frango, peixes, vegetais e frutas em barracas com condições precárias de saneamento dentro e ao redor dos mercados de Iquitos, onde há grande número de visitantes. É um ambiente de elevado risco zoonótico”, alerta o diretor-executivo interino da Proteção Animal Mundial no Brasil, João Almeida. “Justamente por causa da Covid-19, provavelmente originada em mais um episódio de doença disseminada aos humanos a partir do contato descuidado com a vida silvestre, assim como HIV, SARS e MERS, o mercado esteve fechado de maio de 2020 a meados de 2021. Nunca é demais lembrar que 70% das novas doenças infecciosas humanas tiveram origem em animais selvagens”, informa.
No relatório, a investigação de 2019 recebeu novos contornos. De forma ampla, revela agora as implicações não só de uma atividade criminosa que mistura crueldade com animais e que afeta a conservação de espécies, mas que também arrisca a saúde humana. Mostra que lições da Covid-19 não foram aprendidas e serve de exemplo a ser evitado em outros casos de retomada dos negócios. Atesta que problemas antigos para a vida selvagem se avolumam diante da permissividade de autoridades sul-americanas e da inação da comunidade internacional.
Além disso, nessa região de porosidade fronteiriça, o Brasil, que sob a gestão Bolsonaro tem falhado na proteção da Fauna e da Flora e, por outro lado, incentivado a compra de armas com um pretexto de caça, pode estar envolvido tanto como origem de animais comercializados em Iquitos quanto como consumidor, principalmente de pets exóticos como tartarugas, peixes e pássaros de canto. Estes podem vir a ser os vetores da próxima crise global de saúde.
A Investigação

Iquitos é a capital da Amazônia peruana. É uma cidade a beira-rio com pouco mais de 400 mil habitantes situada a algumas centenas de quilômetros da tríplice fronteira com Brasil e Colômbia, região que é um dos polos globais do multibilionário comércio de vida silvestre.
Nessa área, o mercado de Belén é considerado o maior e mais importante nesse negócio, que é ilegal segundo a legislação peruana (Lei nº29.763/2015). A postura é análoga à do Brasil, que desde 1967 define como crime capturar, transportar e utilizar espécimes da fauna silvestre sem a permissão de autoridades ambientais. Todavia, em qualquer lado da fronteira, apesar de leis restritivas, na prática o mercado era e continua sendo abastecido pela exploração de brechas legais (como a caça artesanal por povos nativos) e pela caça e captura criminosas viabilizadas pelo baixo número de agentes de fiscalização.
No trabalho científico de 2019, entrevistas com uma centena de vendedores do mercado de Belén permitiram saber mais sobre as origens, os tipos e as destinações da vida silvestre comercializada no local. As apurações indicaram o envolvimento de animais de mais de 205 diferentes espécies, incluindo onças, primatas, bichos-preguiça, botos, peixes-boi, tartarugas, araras, cobras e capivaras. De acordo com a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), cerca de 9% dos animais identificados eram espécies ameaçadas de extinção, enquanto outros 35% pertenciam a populações em declínio na natureza.
A pesquisa também sugeriu que as espécies mais lucrativas são justamente aquelas que estão se tornando cada vez mais raras. Derivados de onça foram os itens mais caros supostamente vendidos pelos vendedores: um espécime morto inteiro poderia alcançar valor de venda de até US$ 900, enquanto uma pele preparada poderia render até metade dessa cifra.
A apuração ainda mostrou que a demanda dos produtos de vida silvestre é impulsionada principalmente por consumidores urbanos de Iquitos por artigos de luxo, alimentos e preparados ou matérias-primas para simpatias e supostos tratamentos medicinais. A procura para uso como animais de estimação é menor, mas existe tanto em âmbito doméstico quanto internacional. Existe a preocupação de que o Peru sofra influência de comerciantes internacionais e da demanda dos consumidores de vida selvagem em outros países do G20. Além do Brasil, onde há procura por pets, como mencionado anteriormente, a China tem demanda por partes do corpo de onças para uso na medicina tradicional.
Há ainda um outro tipo de uso nocivo e perigoso da vida selvagem no mercado de Belén: animais vivos são utilizados para fins turísticos servindo como figurantes para fotos e selfies com inúmeros visitantes peruanos e estrangeiros ao longo do dia. Esse fenômeno, frequente em localidades amazônicas, foi denunciado ainda em 2017, no relatório “Um Foco Na Crueldade”. Turistas também costumam ser os compradores de outros subprodutos como souvenires, ornamentos e adereços.
Hiato da pandemia foi pouco aproveitado
Já em 2021, relatórios do serviço de inteligência começaram a indicar o retorno dos negócios em Iquitos. A nova investigação dos profissionais da Proteção Animal Mundial mostrou poucas mudanças em relação ao quadro anterior. Além da volta da venda dos animais silvestres, poucas ou nenhuma medida de saúde e segurança em vigor para evitar que doenças zoonóticas se espalhem da vida selvagem para as pessoas.
No tempo em que esteve fechado, o mercado de Belén recebeu recursos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para melhorar os serviços e as condições de higiene. Obras foram realizadas, mas as mudanças foram limitadas a algumas partes da instalação. Além disso, faltaram ações específicas para ajudar a impedir o comércio ilegal de vida selvagem quando houvesse a retomada das atividades.
Autoridades entrevistadas como parte da investigação afirmam que segue um desafio monitorar as atividades irregulares porque há poucas barracas fixas em Belén, de forma que os vendedores de animais selvagens estão em constante movimento e operam de forma oportunista. Isso também dificulta estimar variações do volume de vida selvagem comercializada pré-pandemia e agora.
Como pequeno alento, ao contrário dos resultados da pesquisa científica pré-Covid-19, a venda de primatas vivos e seus derivados não foi observada. Segundo um oficial da Polícia Nacional: “As pessoas das comunidades vizinhas caçam animais, incluindo primatas, e algumas os trazem ao mercado para vender. Mas primatas não são algo que você possa encontrar normalmente no mercado.”
“Este mercado está fazendo uma aposta mortal com a saúde das pessoas. Animais vivos presos em gaiolas sujas, onde seus sistemas imunológicos estão comprometidos, e carcaças de animais não tratadas representam um sério risco à saúde. Mercados como esses funcionam como uma placa de Petri para o desenvolvimento de doenças. Devemos lembrar as lições do passado e quantas doenças zoonóticas se originaram desse tipo de exploração de animais silvestres. A Covid-19 é um exemplo óbvio e presente, que continua a destruir vidas a cada dia”, resumiu Gilbert Sape, chefe de Vida Silvestre da Proteção Animal Mundial.
Ações necessárias
Toda essa situação revela a importância de um sistema orquestrado de proteção à vida silvestre e da saúde pública. Além da existência de leis rigorosas, é preciso aplicá-las. São necessárias campanhas para aumentar a consciência das pessoas sobre os riscos (saúde pública, bem-estar animal e conservação) e sobre os subterfúgios para tornar legal o comércio que nasce com a exploração ilegal de vida selvagem. É fundamental criar políticas sociais para oferecer fontes sustentáveis alternativas de renda para aqueles que atualmente dependem economicamente do comércio de vida selvagem. É obrigatório instalar um aparato robusto de fiscalização e punição nos países que estão da linha de frente da extração dos animais, além de apoio e colaboração entre as nações em todo o mundo para acabar com a demanda do mercado internacional.
Em abril de 2020, a Cúpula da ONU sobre Biodiversidade alertou que “os países devem adotar medidas para evitar pandemias futuras, banindo os mercados que vendem animais silvestres vivos e mortos para consumo humano.” Em abril deste ano, a Organização Mundial da Saúde divulgou um guia para reduzir os riscos de saúde pública associados à venda de mamíferos silvestres vivos em mercados de alimentos tradicionais.
Desde maio do ano passado, já sob o ambiente da pandemia de Covid-19, a Proteção Animal Mundial iniciou uma campanha global de conscientização e engajamento para pedir aos líderes do G-20, o grupo das nações mais poderosas do planeta, o total banimento do comércio de vida silvestre. Na cúpula da organização, em novembro, foi entregue uma petição com mais de um milhão de assinaturas em apoio. A causa vem sendo abraçada por muitos outros representantes da comunidade acadêmica e científica, pela sociedade civil organizada e por ainda mais indivíduos em geral. As ações junto ao G20 seguem em curso, com foco especial na cúpula deste ano, marcada para Roma, nos dias 30 e 31 deste mês.