Como atuar com as populações de cães e gatos domiciliadas e em situação de rua durante a emergência sanitária da COVID-19

Carta aberta aos governos locais

Aos governantes e gestores municipais, em nome das seguintes organizações não-governamentais Proteção Animal Mundial Brasil, Programa de Cães Comunitários Brasil, Compromiso Animal Chile e Proyecto Social Veterinário Chile, esta carta vem comunicar nossa grande preocupação com o impacto que a pandemia da COVID-19 está ocasionado e os desdobramentos que ela trará a curto, médio e longo prazos nas populações de cães e gatos, no bem-estar animal, na saúde pública e no vínculo humano-animal.

Atualmente, a desinformação e o pânico causados ​​por notícias sensacionalistas e tendenciosas veiculadas na grande mídia e nas redes sociais têm causado um aumento no abandono de animais de estimação em todo o mundo, o que está gerando efeitos diretos na saúde pública devido ao aumento de animais nas ruas, impactando seu bem-estar e alterando os processos de migração de animais em busca de recursos.

Há muitas notícias falsas (fake news) sobre a possível transmissão da COVID-19 de animais para pessoas. Algumas mensagens causaram pânico e medo à população, o que, por sua vez, está levando ao abandono, maus-tratos e matança indiscriminada e cruel de cães e gatos.

Além disso, o distanciamento social e o fato das pessoas estarem mais confinadas em suas casas - comportamento esse vital para evitar novos contágios - estão ocasionando um impacto negativo no bem-estar dos animais que vivem nas ruas e são extremamente dependentes dos recursos e do cuidado humano. Muitos estão desprovidos de alimento e água, recursos essenciais para a sobrevivência.

Atualmente, vários países já iniciaram medidas de resposta para ajudar animais que não possuem tutor, animais abandonados, animais comunitários ou animais em situação de vulnerabilidade. Em Nova Deli, na Índia, já existe o “Passe Alimentador”, permitindo que as pessoas acessem áreas para alimentar cães, gatos, macacos e aves nas ruas. Na Colômbia, a Polícia do Departamento de Antioquia, após detectar um aumento de cães nas ruas, organizou um plano para alimentar os animais, alertando a população a não abandonar seus animais de estimação, enquanto que na Turquia, o Ministério do Interior decidiu trabalhar com os governos locais para fornecer água e comida aos animais em abrigos, praças, parques e qualquer outra área onde animais de estimação em necessidade sejam encontrados. Um país que tem se destacado nessa ajuda é a Grécia, que alocou um orçamento federal para as subdivisões federativas alimentarem os animais de rua. 

E considerando que:

  • Os animais de companhia possuem importância e relevância funcional e afetiva no Brasil e no mundo, onde já são mencionadas as famílias multiespécies, compostas por pessoas e animais de estimação.
  • Somente no Brasil, há mais de 52 milhões de cães e 21 milhões de gatos domiciliados e há mais lares com animais de estimação do que com crianças até 12 anos. (IBGE,2015)
  • No Brasil existem mais de 170 mil animais estão sob os cuidados de 370 ONGs e grupos que atuam na área de proteção animal em todo o Brasil. (Instituto Pet Brasil, 2019)
  • Há estimativas de que mais de 30 milhões de cães e gatos vivam nas ruas dependendo exclusivamente da ajuda humana.
  • Pode haver um maior número de abandonos devido ao medo infundado de que os animais possam infectar pessoas, como aconteceu na China e em outras partes do mundo.
  • Muitos animais domésticos, incluindo os animais silvestres e animais de fazenda, correm o risco de ficarem isolados, sem acesso a comida, a água e a atenção médico-veterinária, porque seus tutores ou responsáveis ​​podem contrair a doença COVID-19 e podem estar internados.
  • Protetores de animais que alimentam colônias de cães ou gatos ferais, ou comunitários, podem contrair o COVID-19 ou podem estar isolados por conta da quarentena, sendo impossibilitados de sair às ruas ou impedidos de alimentar ou prestar cuidados médico-veterinários aos animais.
  • Entendendo que essas situações podem resultar em impactos negativos no bem-estar animal e na saúde pública, pois animais sem cuidados e comida podem mudar seu comportamento, tendendo a ser mais agressivos em prol da sobrevivência, aumentando assim o número de mordidas e ataques.
  • Entendendo que possa haver ONGs e abrigos de animais em situação de vulnerabilidade, devido ao baixo apoio de voluntários, a diminuição da captação de recursos, pela crise econômica, causando impacto na capacidade de fornecer os cuidados necessários aos seus animais.
  • De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), Proteção Animal Mundial, OIE (Organização Mundial da Saúde Animal), CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), WSAVA (Associação Mundial de Animais de Estimação Veterinária) e COLMEVET (Faculdade de Medicina Veterinária do Chile), não há evidências de que os animais possam ser uma fonte de transmissão ou infecção para outros animais ou humanos, havendo apenas casos isolados e sob investigação.


Requeremos que os governos locais criem uma “Rede de coordenação e apoio aos animais durante a pandemia da COVID-19” para enfrentar de forma reativa e preventiva as situações mencionadas anteriormente e nos colocamos à disposição das autoridades locais para apoiá-los tecnicamente, aproveitando as habilidades de cada organização que assina esta carta.

Desta forma, diante do exposto e indo ao encontro das recomendações das organizações internacionais de saúde pública e saúde animal, recomendamos que os municípios atuem de forma coordenada através das seguintes ações:

  • Comunicar de forma clara nos canais oficiais da prefeitura sobre os fatos e esclarecer os mitos relacionados à COVID19 e os animais de estimação, a fim de evitar abandono maciço e maus-tratos.
  • Estabelecer uma linha de apoio (help line) ou página em um site oficial da prefeitura com todas as informações sobre o COVID-19 e animais de estimação, para que a população tenha um local seguro e oficial para responder às suas perguntas.
  • Estabelecer equipes de resposta (multidisciplinares e de múltiplas agências) para ajudar animais de estimação em risco, de preferência comandadas pelo serviço veterinário do município. Animais doentes e famintos podem oferecer risco à saúde pública.
  • Estabelecer ou facilitar a organização de uma rede de apoio as organizações de proteção animal locais e aos protetores independentes que já fazem o trabalho de ajuda e proteção aos animais da cidade, para que possam dar continuidade aos seus trabalhos com segurança, apoio e organização; e que sejam assistidas com donativos de EPIs (Equipamentos de Proteção Individuais), rações e insumos para o atendimento aos animais carentes. Importante que o governo local também ajude na informação e conscientização destes protetores em medidas de segurança e prevenção à COVID-19. A prefeitura pode e deve facilitar a formação de coalizões de ONGs menores, para que estas possam angariar fundos de maneira ordenada e organizar a ajuda aos animais em risco, já que muitas são muito pequenas e não têm capacidade de organização.
  • Identificar, cadastrar e autorizar a circulação de alimentadores, cuidadores ou membros de ONGs, que precisam visitar abrigos, parques, praças ou outros espaços públicos que estejam com a circulação proibida ou restrita, para que estes possam circular nestes locais durante o período de quarentena, mantendo todas as recomendações da autoridade sanitária na cadeia de atividades. Isto se faz necessário pois os animais estão acostumados a serem alimentados por essas pessoas, que por sua vez já estão habituadas a identificar qualquer alteração na saúde e no comportamento destes animais, sendo muito importante para a saúde pública. Mecanismos devem ser instaurados para que estas pessoas tenham permissão de continuarem com sua rotina de alimentação, nos locais já habitualmente visitados, mesmo que estes estejam fechados.
  • Garantir que a cadeia de aquisição e distribuição de alimentos e insumos médico-veterinários seja garantinda e que o atendimento de animais de tutores e/ou de associações sejam possíveis. Os serviços veterinários e os locais de venda de ração e medicamentos veterinários devem ser considerados essenciais e permaneçam abertos.
  • Garantir que os órgãos públicos (UVZs, canis municipais, coordenadorias de bem-estar animal) possam comprar alimentos para cães e gatos em caráter emergencial para não deixar os canis desabastecidos neste momento de pandemia.
  • Aumentar a fiscalização em relação aos casos de abandonos e maus- tratos aos animais de estimação, durante esse período, para evitar uma catástrofe em termos de animais abandonados, como ocorreu em Wuhan, na China, devido ao medo infundado de transmissão do novo coronavírus por cães e gatos. Além da intensificação da fiscalização, a punição deve seguir nos termos do Artigo 32 da lei de Crimes Ambientais que discorre: “Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa”. Sendo que o abandono deve ser enquadrado como maus-tratos e os culpados deve ser punido como tal.
  • Avaliar o comportamento, a dinâmica populacional dos animais que vivem nas ruas da cidade, como os cães e gatos errantes, o crescimento das colônias de gatos, e a movimentação dos animais comunitários. Neste momento de quarentena e isolamento social não é recomendável continuar com os trabalhos de CED (captura, esterilização e devolução) e com os mutirões de castração, por conta do risco aos operadores. Cada caso deve ser avaliado individualmente, avaliados os riscos e os benefícios, pois sabemos que em alguns casos, a interrupção das ações de controle reprodutivo, podem aumentar muito rapidamente o número de indivíduos. No entanto, orientamos que os atendimentos emergenciais de animais em situação de risco, animais doentes, ou atrelados deve continuar normalmente e todos as orientações de prevenção quanto ao novo coronavírus devem ser implementadas para garantir a saúde das equipes. Além disso, devem ser oferecidos EPIs adequados a todos que trabalham nas ruas, nos resgates e atendimento veterinário.
  • Criar uma campanha educativa em guarda responsável, para conscientizar as pessoas a não abandonarem seus animais neste momento e a coibirem qualquer tipo de maus- tratos a animais nas ruas, incluindo também informações de como as pessoas podem ajudar as ONGs locais, o abrigo local, como podem oferecer LT ( lar temporário) aos animais que estão em abrigos superlotados durante a quarentena, entre outras ações de ajuda.  Orientar aqueles que querem adotar animais durante a quarentena que não o façam simplesmente por impulso, mostrando que cães e gatos vivem em média 15 anos e devem ser cuidados com responsabilidade.
  • Estabelecer grupos multidisciplinares para monitorar outras doenças zoonóticas,  como leishmaniose, esporotricose, raiva e os seus efeitos na saúde pública, como também monitorar se há aumento nos números de agravos (mordeduras caninas) e os números relacionados ao abandono, por áreas e características. Faz-se necessário saber se há um aumento de outras doenças devido ao aumento do abandono ou ao isolamento social pela quarentena e até mesmo ao menor acesso dos animais aos serviços veterinários. Portanto, precisamos conhecer o problema para planejar a ajuda às áreas mais problemáticas, mantendo todas as recomendações da autoridade de saúde na cadeia de atividades.


Para isso se recomenda fortemente que os municípios formem inicialmente um comitê independente e multidisciplinar para tratar das questões relacionadas aos animais domésticos, a fim de se estabelecer um planejamento de forma que abranja ações de resposta à curto e médio prazo e também planos de redução de riscos futuros em relação a pandemia da COVID-19 e as outras que possam vir, sempre antevendo e ajudando a minimizar os impactos desta e de outras situações que levem a quarentena e pensando à curto, médio e longo prazo.

Assinam esta carta:

Rosangela Ribeiro – World Animal Protection

Melania Gamboa – World Animal Protection

Juliana Tozzi de Almeida - Programa Cão Comunitário

Fabián Espínola Quilodrán - Projeto Social Veterinário

Rodrigo Morales Fortuzzi - ONG Compromisso Animal