
Quando quem deve ser fiscalizado quer virar fiscal: o lobby da carne em ação
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Reportagens revelam como entidades do setor influenciam diretamente o Mapa e a reforma tributária, blindando-se de impostos e fiscalização.
O que está acontecendo?
Nos últimos dois anos, a indústria da carne tem atuado em Brasília para mudar as regras da fiscalização nos frigoríficos. A ideia é regulamentar a chamada Lei do Autocontrole (Lei 14.515/2022), aprovada no fim do governo Bolsonaro, que permite que as próprias empresas inspecionem seus próprios processos produtivos.
Na prática, isso significaria que o controle sobre as condições do local e saúde dos animais, antes e depois do abate (hoje uma tarefa do governo) poderia passar a ser avaliada por fiscais privados, contratados e pagos pelos frigoríficos.
Quem está por trás
A reportagem da Repórter Brasil mostrou que a proposta de regulamentação partiu diretamente de duas entidades associadas ao setor: a ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal) e a Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes).
Essas associações chegaram a enviar ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) uma minuta de decreto pronta, que serviu de base para as discussões oficiais.
Mais grave ainda: representantes da JBS, maior processadora de proteína animal do mundo, também participaram ativamente dos grupos de trabalho no ministério, apesar de formalmente estarem ali em nome das associações.
Foram citados pela reportagem a diretora de Garantia de Qualidade da Friboi/JBS, Maria Emilia Santoro Raucci, indicada pela Abiec, e o gerente jurídico da JBS, Adriano Chalegh, indicado pela ABPA.
Ambos usavam e-mails corporativos da JBS nas comunicações oficiais com o governo e, segundo registros, participaram de dezenas de reuniões no ministério argumentando a favor da privatização desse controle exercido pelo Estado.
Ou seja: ainda que o setor privado não pudesse participar diretamente, já que isso caracterizaria um grande conflito de interesses, seus maiores executivos estavam sentados à mesa, influenciando a redação das normas.
Outra reportagem, do Joio e o Trigo, revelou ainda que esse lobby não se limitou ao Ministério da Agricultura, nem apenas à tentativa de flexibilizar a fiscalização: durante a tramitação da reforma tributária, as mesmas entidades (ABPA, Abiec e JBS) atuaram para que a carne ficasse de fora da lista de produtos a serem taxados.
Com isso, mesmo sendo um dos setores que mais emitem gases de efeito estufa no Brasil, a indústria da carne foi blindada de maiores tributações e da responsabilização por seus impactos, garantindo esses benefícios fiscais em nome da “competitividade internacional”.
A quem interessa menos controle?
Na prática, a Lei do Autocontrole transfere responsabilidades que deveriam ser do Estado para empresas privadas – e a um setor que tem histórico de irregularidades. Ela fragiliza o controle público e amplia o poder e o dano de empresas como a JBS, que já possui influência desproporcional nos ministérios e fóruns de decisão.
“Políticas públicas não podem ser desenhadas a portas fechadas, sob medida para grandes empresas. Faltou transparência nas negociações entre governo e setor privado e participação da sociedade civil. É fundamental fortalecer o papel do Estado na fiscalização da cadeia da carne e cobrar responsabilidade das empresas que lucram às custas da saúde pública e do meio ambiente”, afirma Natália Figueiredo, nossa gerente de Políticas Públicas
“Só interessa a um grupo controlar a fiscalização dessa atividade – e não é o dos consumidores. O conflito de interesses é evidente, e é preocupante que a medida tenha sido aprovada em um processo tão destoante dos padrões legítimos de políticas públicas, cujo foco deveria ser atender a sociedade. As empresas do setor da pecuária industrial tem deixado muito claro que não tem intenção de mitigar seus impactos”, complementa Natália.
Esses casos reforçam que o lobby da carne não se limita ao Mapa, mas também avança sobre o Ministério da Fazenda e sobre a própria formulação da política tributária nacional. A investida das empresas e do agronegócio, portanto, é sistêmica, permeando diferentes esferas do governo para servir aos interesses de um único setor.
O risco do “autocontrole”
A justificativa do setor para propor as alterações e garantir o comando da fiscalização é de que o modelo traria “eficiência administrativa”. Mas, nesse caso, eficiência administrativa seria sinônimo de conflito de interesses. Afinal, fiscais pagos pelos frigoríficos dificilmente terão a autonomia necessária para barrar irregularidades, já que isso pode implicar em perdas financeiras para a própria empresa que os contrata.
Seria, também, sinônimo de afrouxamento das punições: uma vez que a lei limitou a R$150 mil o valor máximo de multas aplicáveis a frigoríficos de penalidades que antes chegavam a ultrapassar R$1 milhão, como ocorreu com a Seara (do grupo JBS).
Para se ter uma ideia da dimensão dos riscos, em 2017, a Operação Carne Fraca revelou fraudes em grandes frigoríficos e corrupção de auditores. Esse escândalo levou até o então ministro Blairo Maggi a admitir que não é possível abrir mão da presença do Estado.
O Joio e o Trigo aponta que esse movimento de “autocontrole” se conecta diretamente à estratégia de desonerar o setor: menos impostos e menos fiscalização caminham lado a lado, favorecendo o crescimento de empresas que já acumulam histórico de multas, embargos ambientais e denúncias de violações trabalhistas.
Quem ficou de fora do debate
Enquanto a indústria ocupava 12 assentos no grupo de trabalho, o governo federal tinha apenas 4 e a sociedade civil: nenhuma. Entidades de defesa do consumidor, do bem-estar animal e sindicatos de auditores fiscais foram deliberadamente excluídos.
Janus Pablo, presidente da Anffa (sindicato dos auditores fiscais), foi categórico: a lei foi uma “encomenda do setor produtivo de origem animal”.
O debate sobre autocontrole vai muito além da burocracia e da eficiência administrativa, envolvendo questões críticas de saúde pública, meio ambiente, clima, justiça social e bem-estar animal.
A agropecuária industrial gera impactos ambientais graves, indo muito além do desmatamento, do qual é o principal responsável no Brasil, e comprometendo a saúde do solo e da água por meio de seus insumos e resíduos. A falta de fiscalização pública aumenta o risco de contaminações e danos irreversíveis aos ecossistemas e à saúde da população.
Doenças como a brucelose podem ser transmitidas pela carne contaminada. Com menos fiscais independentes e com um sistema mais vulnerável a interesses privados e com mais espaço para fraudes e omissões, o risco de contaminação com doenças como essa aumenta.
Além disso, uma investigação recente da Animal Equality Brasil, mostrou também que a ausência de fiscais públicos resulta em mais violações nas linhas de abate, expondo os animais a níveis ainda maiores de crueldade.
“Inúmeras denúncias por graves violações de direitos humanos e por danos ao meio ambiente, somadas à prática de captura corporativa, demonstram que não é possível confiar na boa vontade, ou seja, em processos auto fiscalizatórios e compromissos voluntários, ainda mais em tempos de emergência climática”, lembra Camila Mikie Nakaharada, nossa gerente de Clima.
“É inaceitável que uma empresa gigante do agronegócio – setor que mais contribui para as emissões de gases do efeito estufa no Brasil – afirme publicamente que suas metas para zerar suas emissões são apenas uma ‘aspiração’”, complementa.
A reportagem sobre a influência do setor sobre a tributação escancara a contradição: ao mesmo tempo em que o setor pressiona por menos regras e impostos, o ônus ambiental e climático da pecuária recai sobre toda a sociedade. Ou seja, socializam-se os danos – poluição, doenças, destruição ambiental – e privatizam-se os lucros.