Foto de um porco mordendo a barra da jaula

No bolso e na saúde: relatório mostra como cidadãos no mundo todo sofrem com efeitos da produção de carne em escala industrial

Notícias

Achados integram relatório global “Os Impactos Ocultos da Pecuária Industrial Intensiva”, divulgado neste Dia Mundial da Saúde

Como se não houvesse amanhã, a demanda mundial por carne e derivados em quantidades crescentes e pelo menor preço possível está sustentando um sistema falho, que cobra uma conta progressivamente mais salgada, esvazia nossos bolsos, mina as contas públicas e acumula vítimas em velocidade estonteante. Correndo contra o tempo, cientistas e pesquisadores de diferentes áreas vão conectando os pontos para identificar os aspectos evidentes e os quase imperceptíveis desse problema complexo e revelador da interconexão entre saúde humana, animal e ambiental. O novo relatório global lançado hoje, Dia Mundial da Saúde, pela Proteção Animal Mundial e pela consultoria internacional Tasting The Future, contribui para o por às claras o desafio e propor soluções racionais.

A resistência antimicrobiana (RAM), por exemplo, é uma das mais graves preocupações das autoridades de saúde dentre as linhas de impacto associadas à pecuária industrial intensiva consideradas na pesquisa. De particular inquietação para o Brasil, o tema ganha atenção exclusiva na campanha “Haja Estômago!”, também lançada hoje como prioridade local do time da Proteção Animal Mundial no país (detalhes ao final do texto).

Evidência da dimensão dessa crise, anualmente quase 1,2 milhão de vidas[i] em todo mundo são perdidas devido à gradual perda de eficácia dos medicamentos atuais para combater doenças causadas por bactérias, vírus, fungos e parasitas. A fonte do problema não é única, mas o fato é que a pecuária industrial intensiva consome hoje cerca de 75% da produção mundial de antibióticos e exerce papel central no agravamento dos riscos.

Em mais uma linha, as enfermidades humanas transmitidas por animais (como malária, dengue, febre amarela, gripe suína, aviária e, crê-se, a Covid-19), respondem por mais de 2,5 bilhões de casos, 2,7 milhões de mortes e custos estratosféricos de prevenção e tratamento.

O próprio consumo de produtos de origem animal também aparece relacionado a outro problema com números impressionantes atrelados. Dietas pobres e inadequadas, incentivadas por um sistema que privilegia comidas processadas e a preços abaixo dos custos reais estão associadas ao desenvolvimento de diabetes, problemas cardíacos e câncer, entre outros, questão particularmente aguda em nações de baixa e média renda. Essas enfermidades fazem parte do conjunto das Doenças Crônicas Não Transmissíveis, que responde por 41 milhões de fatalidades anuais – 71% dos óbitos registrados no planeta. Para ter uma ideia, no Brasil, em 2019, a DCNTs foram a causa de quase 55% das mortes no país[ii].

A lista de impactos continua com problemas causados por alimentos contaminados e impróprios, por poluição ambiental de do ar, do solo e de águas, transformação do uso da terra, entre outros. Na América Latina, por exemplo, Brasil e a Argentina têm alguns dos mais elevados índices de consumo de carne por capita, com 79kg e 88kg ao ano, respectivamente. O setor agropecuário exerce extremo impacto ambiental, sobretudo como um dos principais causadores de desmatamento. Dois terços das terras desmatadas nos biomas da Amazonia e Cerrado foram convertidos em pastagens para o gado[iii].

Cada um dos aspectos citados entra numa conta circular, que abrange ainda incidentes laborais propriamente ditos, e na qual somam-se milhões de dias de afastamento de trabalhadores, perda de produtividade, incapacitações diversas, anos de vida com baixa qualidade ou mortes prematuras, tudo gerando custos que pressionam sistemas de saúde e de seguridade social.

Estes são apenas alguns exemplos do quadro descrito em “Os Impactos Ocultos da Pecuária Industrial Intensiva”. Compilando uma quantidade maciça de informações cientificamente referenciadas, o relatório sistematiza dados e fatos relacionados aos principais impactos de saúde, sociais e econômicos gerados pelo sistema de agropecuária industrial em todo o planeta, inclusive no Brasil.

Põe na conta

Para poder chegar a conclusões, o documento mostra como essa longa e intrincada cadeia, com anuência de governos, deliberadamente desconsidera custos, promove concentração de vantagens nas mãos de poucas corporações globais e empurra despesas para as os cidadãos, seja sob a forma de gastos privados e impostos, seja como poluição e deterioração ambiental ou como, em última instância, doenças transmissíveis, crônicas e fatalidades. Tudo isso se acumula e se conecta ao sofrimento de bilhões de animais criados e abatidos anualmente conforme denunciado há anos pela Proteção Animal Mundial.

O relatório segue o conceito de cinco caminhos através dos quais os sistemas alimentares afetam negativamente nossa saúde descrito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no relatório “Food Systems Delivering Better Health”[iv] (2021). Esses impactos negativos na saúde aparecem diretamente ligados à pecuária industrial intensiva das seguintes formas (confira mais detalhes no nosso infográfico):

  • Dietas insalubres e insegurança alimentar
  • Patógenos zoonóticos e resistência antimicrobiana (RAM)
  • Alimentos inseguros e adulterados
  • Contaminação e degradação ambiental
  • Riscos ocupacionais

Além da realidade posta, é preciso agir diante da tendência de piora do quadro à medida em que a demanda por carne em todos os cantos do mundo se expande e é impulsionada. Até 2030, o consumo de carne deverá crescer 30% na África, 18% na Ásia-Pacífico, 12% na América Latina, 9% na América do Norte e 0,4% na Europa[v].

Essa demanda vertiginosa vê bilhões de animais estressados confinados em ambientes estéreis por toda a vida. Mais de 70% dos 80 bilhões de animais terrestres criados globalmente são criados e abatidos em sistemas cruéis de criação industrial a cada ano. Nos EUA, esse número chega a 99%[vi].

Contabilidade de custos reais

Segundo José Ciocca, gerente de Agropecuária Sustentável da Proteção Animal Mundial, “Ainda que percepção de preço varie subjetivamente, a indústria busca produzir carne, peixe e laticínios pelo menor custo possível. Mas para isso exclui do preço ao consumidor final custos pelos quais deveria se responsabilizar, como os referentes aos danos ambientais diretos e indiretos, à baixa qualidade nutricional de alimentos processados, aos riscos sanitários, aos problemas trabalhistas etc.”.

Ele explica melhor a noção de “maquiagem” do custo: “Se no Brasil neste momento parece caro consumir carne, isso envolve também uma questão de renda, é evidente. Mas a verdade é que se houvesse uma contabilidade real de custos no preço de cada quilo de carne, pessoas de diferentes classes sociais entenderiam que, a qualquer tempo, consumir proteína animal deveria ser encarado como um pequeno luxo que elas deveriam se dar com menor frequência e grande consciência. É um produto que consome muitos recursos e, para ser oferecido de forma maciça, é produzido de maneira muito danosa. Sobram para nossos bolsos particulares e para os governos trilhões de dólares a cada ano para conter os danos”.

Uma Saúde, Um Bem-estar

Para Lian Thomas, cientista do International Livestock Research Institute (Instituto Internacional de Pesquisa Pecuária, em tradução livre), uma das entidades consultadas na elaboração do relatório, “a saúde dos animais de produção e seu ambiente deve ser uma alta prioridade para o setor de saúde pública. Sistemas alimentares sustentáveis, que promovam boa saúde e bem-estar animal, conjuntamente à proteção ambiental, manterão diretamente protegida a saúde humana”.

Importante ressaltar que o relatório não prega o fim da atividade agropecuária, mas identifica e propõe caminhos para transformar nossos sistemas atuais em sistemas regenerativos e restauradores, melhorando a saúde e o bem-estar das pessoas, do planeta e dos animais. Eles dizem respeito a processos que incluem uma mudança de mentalidade, adoção de custos e preços reais, transição justa,  alteração nas estruturas de poder e influência, mudança no comércio, fixação de padrões mais elevados de bem-estar animal, transição para sistemas regenerativos e agroecológicos, mudança para dietas sustentáveis e saudáveis e mudança para uma abordagem de Saúde Única, Bem-estar Único. Com base nesse diagnóstico, os autores do relatório esboçam uma dezena de recomendações para a ação governamental.

Essas mudanças sistêmicas necessárias estão esmiuçadas no relatório. Algumas delas incluem reorientar os subsídios da criação industrial intensiva de animais para práticas éticas e sustentáveis, melhorar a acessibilidade dos alimentos à base de plantas e fornecer apoio de transição para os agricultores que não desejam mais se envolver na agricultura industrial.

Para encaminhar mudanças, a Proteção Animal Mundial está pedindo aos governos de todo o mundo que imponham uma moratória nas criações industriais intensivas de animais, e para que introduzam e fiscalizem padrões mais altos de bem-estar dos animais de criação.

Haja Estômago!

Centrando foco em uma das mais importantes linhas de impacto da pecuária industrial intensiva, tem início hoje no Brasil a campanha “Haja Estômago!” de combate à resistência antimicrobiana. Ela vai consolidar e aprofundar as iniciativas que a Proteção Animal Mundial já tem empreendido sobre o tema.

Entre diversos recursos e ações que irão se desdobrar pelo menos até o final de 2023, a campanha é composta de página informativa exclusiva, ativações em redes sociais, relatórios especiais e vídeos ilustrativos. Ações offline serão programadas em paralelo ao arrefecimento da pandemia de Covid-19. Há ainda um minidocumentário sobre o tema em produção.

De forma geral, com a campanha “Haja Estômago!” a ONG pretende conscientizar a população nacional sobre o uso irresponsável de antibióticos na produção animal, sobre seus impactos e sobre como atuar por melhorias.

“Temos que enfrentar a resistência antimicrobiana, que representa hoje uma crescente ameaça à saúde global e que deve ser abordada com urgência na saúde pública, uma vez que coloca em risco o tratamento eficaz de infecções causadas por bactérias, parasitas, vírus e fungos, resultando em doenças mais prolongadas e em maior mortalidade”, defende o advogado Matheus Falcão, analista de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC). O IDEC e Proteção Animal Mundial elaboraram em parceria o policy paper “Como evitar a próxima catástrofe sanitária: resistência antimicrobiana", divulgado em novembro do ano passado. “Também é importante dizer, que o impacto é maior nas populações mais vulneráveis. Como se não bastasse, a RAM coloca em risco a sustentabilidade dos sistemas agroalimentares e, com ela, a segurança alimentar”, completa Falcão.

Ainda no final de 2021, a Proteção Animal Mundial publicou o relatório nacional “Bactérias multirresistentes: em um rio próximo de você”. Com assessoria técnica da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o estudo replicou no Brasil pesquisas anteriores da Proteção Animal Mundial na Espanha, EUA, Canadá e Tailândia. Em todos esses lugares as pesquisas reforçam os elos entre criação industrial intensiva animal e a disseminação de bactérias no meio ambiente, colocando a saúde das pessoas em risco grave. No Brasil, foram encontrados genes de resistência a antibióticos em águas de rios nas proximidades de fazendas suinícolas no Paraná.

 

Leia o relatório completo

 

Referências

[i] Murray CJL, Ikuta KS, Sharara F, et al. Global burden of bacterial antimicrobial resistance in 2019: a systematic analysis. Lancet 2022, https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)02724-0/fulltext (acessado em 4 de abril de 2022)

[ii] Ministério da Saúde, 2021, https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2021-1/setembro/saude-apresenta-atual-cenario-das-doencas-nao-transmissiveis-no-brasil (acessado em 22 de março de 2022)

[iii] Mapbiomas, Projeto MapBiomas. 2018. Coleção v3 da Série Anual de Mapas de Cobertura e Uso de Solo do Brasil https://mapbiomas.org/ (Acessado em 1 de Novembro de 2021).

[iv] WHO. 2021. https://www.who.int/publications/i/item/9789240031814 (acessado em 15 de setembro de 2021)

[v] OECD/FAO. 2021. OECD-FAO Agricultural Outlook (Edition 2021). OECD Agriculture Statistics (database), https://doi.org/10.1787/4bde2d83-en (acessado em 8 de setembro de 2021)

[vi] Sentience Institute. 2019. US Factory Farming Estimates. https://www.sentienceinstitute.org/us-factory-farming-estimates (acessado em 21 de outubro de 2021)